Desde aquela segunda-feira que a minha vida mudara em todos os sentidos. O Jorge todos os dias ia me buscar ao trabalho em entrecampos e estávamos sempre a acordar juntos, ora na minha casa ora na dele. Maioritariamente era eu quem estava na cama dele de manhã, mais por causa do Bernardo, que por ser um canito ainda novinho, precisava de passear todos os dias antes de irmos para a cama e logo a seguir a acordar senão fazia as necessidades em qualquer parte do apartamento.
Estava a adorar esta nova vida que, de repente, passara a ter no meu quotidiano. Assim chegara o Natal e depois de visitar o meu pai na casa dele no Cacém, fomos almoçar à casa dos pais do Jorge, que viviam em Massamá, por cima de um antigo centro comercial de materiais de construção, que vim a saber era muito perto da casa do antigo primeiro-ministro Passos Coelho. Foi um dia de Natal tranquilo e pela primeira vez, desde que a minha mãe morrera, sentia o calor e carinho de estar no seio de uma família barulhenta, feliz e muito unida. Veio o ano novo e, mais uma surpresa, pois o Jorge tinha tudo marcado para irmos passar a noite de réveillon no Algarve, onde os pais têm um apartamento em Albufeira, muito perto da zona comercial mesmo ao lado da Câmara Municipal. Estávamos mesmo no centro dos acontecimentos e na noite de 31 foi somente descer a rua até a praia dos pescadores no centro de Albufeira e, apesar do frio, sentia o calor do seu corpo abraçado ao meu enquanto víamos os fogos de artificio pipocarem no céu a clarear todo o areal que tinha sido invadido por milhares de pessoas a se beijarem, abraçarem, brindarem o ano novo e fazer desejos que tudo mude no ano que iniciava. No meu caso, o que desejara fora somente que aquilo que vivia não mudasse.
Chegara o dia 5 de janeiro e naquele dia abririam as inscrições para quem quisesse participar no programa de aceleração de criação do seu negócio do programa ‘adição’. Desde que conhecera o Jorge, nunca tinha falado com ele sobre o meu projecto da ‘Maria Costureirinha’ e da conversa que tinha tido com o José Marques no mesmo dia que o conheci. Parecia a mim que aquilo tinha acontecido a tanto tempo, mas havia somente passado três semanas.
Foi mais um dia que acordei na cama do Jorge e quando ele vinha com a bandeja na mão para tomarmos o pequeno-almoço na cama, a minha cara transmitia a angustia que me fizera ter uma noite com muitos sonhos e acordar assustada umas quantas vezes. Aliás já estava acordada quando o Jorge se levantou, mas fingi que dormia mantendo o olhos fechados e sem me mexer.
“O que foi Maria, pareces preocupada com alguma coisa. Há alguma coisa errada?”
“Não. Está tudo bem.”
“Maria, desculpa mas a tua boca diz que está tudo bem, mas a tua cara e o teu corpo, não. Vá lá, não confias em mim? fiz alguma coisa errada e não queres me contar?”
Olhei com carinho para aquela cara e aqueles olhos verdes que me fascinavam sempre que mirava-os. Pus a mão no rosto dele, senti a barba de dois dias a picar a minha mão, mas gostava da sensação. Respondi que não era nada com ele. Que havia algo que até aquele dia não o tinha contado e comecei a falar.
“Lembra-se do dia que nos conhecemos no café ao pé do parque?”
“Como posso não me lembrar! Foi algo atribulado, se não tivesses engasgado com aquela gigantesca tosta mista, provavelmente hoje não ter teria aqui na minha cama.”
Sorri e continue. Contei-lhe do que me acontecera desde o inicio, que trabalhava em três lugares, que tinha sido escolhida para um programa de aceleração de projectos de criação de negócio, que tinha feito um plano de negócios e tinha sido selecionada para os 20 finalistas. Contei também que tinha ficado de fora, o sentimento de fracasso e como no final recebi um cartão e um potencial convite para participar num programar de aceleração de negócios do José Marques. A medida que falava o Jorge olhava para mim com um ar estarrecido que até fiquei com medo.
“O que foi, estas triste comigo? Desculpa não tive coragem para te contar isso antes. Estou tão feliz com a nossa relação que sentia que se falasse iria quebrar o encanto.”
Ele continuava a olhar para mim sem dizer uma palavra. Deveria estar a assimilar tanta informação ao mesmo tempo… e eu ainda não tinha contado o mais difícil, que teria que abandonar o emprego de entrecampos e não tinha como sobreviver sem ter uma fonte de rendimento.
“Uau! Realmente a tua vida nestes últimos tempos não tem sido nada normal. Estou espantado e nem sei o que te dizer. Mas depois disso tudo, sinto que ainda falta me contares alguma coisa, estou certo?”
“Sim. Mas o que falta pode fazer tu não quereres mais estar comigo.”
“Humm, como é que sabes isso? Ainda só andamos juntos a três semanas e se calhar ainda não conheces tudo do que sou capaz.”
“Não vale a pena Jorge. Deixa lá, não vou mesmo continuar em frente com o projecto. As coisas que estão em risco são demasiado elevadas para eu as abandonar.”
“Como assim? Agora sou eu que estou curioso. Quero que me contes tudo por favor. Permita que possa dar-te uma ajuda, mesmo que seja somente ouvir para desabafares o que está preso no teu peito, que por sinal são muito lindos.”
Sorri com a piada fácil. Foi então que abri todo o meu coração. Expliquei com todos os detalhes a conversa com o José Marques e sobre o conflito de horário, que apesar de terminar as 17h00, até dava para eu continuar a trabalhar no callcenter, mas que devido os trabalhos que teriam de ser entregues no dia a seguir de manhã, dificilmente conseguiria ter isso pronto. Expliquei como os trabalhos de grupo são feitos justamente a noite e que todos devem dar 150% de disponibilidade, pois era a única forma de conseguir que o projecto que levo pode ter uma possibilidade de dar certo.
Ele continuava calado a melhor fixamente como se estivesse a devorar com toda a atenção tudo o que dizia, palavra por palavra.
“Conta-me por favor mais sobre o teu projecto. Como se chama?”
“Maria Costureirinha.”
Contei, mais uma vez, mas agora com mais detalhes, tudo sobre como nasceu a ideia desde a data do anúncio do jornal Expresso em Setembro do ano passado até quando submeti o projecto.
“Sabe uma coisa Maria, gosto muito do teu projecto. Acredito que ele tem pernas para andar.”
“Sim, eu também acredito. Mas há um risco que é eu ter de abandonar o meu emprego. Eu não posso ficar sem rendimento. Não tenho poupanças e tudo o que ganho é o suficiente para eu pagar as contas e comprar comida. Não posso me dar a este luxo.”
“Interessante!”
“Como assim, o que queres dizer com interessante?”
“Tenho uma ideia, mas antes de partilhar contigo, diz-me do fundo do teu coração o seguinte. Numa escala de 1 a 10 qual a tua vontade de levar isso avante?
“12!”
“Só mais duas perguntas, quanto tempo é mesmo o programa?”
“Duas semanas intensivas incluindo dois sábados e dois domingos,”
“Quando começa?”
“As inscrições online abrem hoje e termina no dia 7. Depois eles vão avaliar os projectos propostos e chamam os candidatos para uma entrevista. Se passar na primeira avaliação ele verificam se a pessoa está inscrita num centro de emprego e por isso não paga nada, mas como não estou desempregada, tenho que pagar 35€, caso queira frequentar, se o meu projecto for escolhido. O curso começa na segunda-feira seguinte.”
Ele continuava a olhar para mim e a expressão do seu rosto demonstrava que naquela cabeça ele pensava intensamente em algo. Não conseguia falar mais tal era a angustia. Será que tinha esticado a corda e ele pensava que eu queria me aproveitar dele? Ou se calhar iria me desmotivar do projecto, pois não queria se comprometer com alguém que só conhecera a pouco mais de duas semanas. Não sabia como reagir. Fiquei calada e esperei que fosse ele a falar primeiro.
“Deixa-me ver se compreendi bem tudo o que me disse. Tens uma ideia de projecto para um negócio, apresentaste numa incubadora de ideias, mas não foste escolhida. Depois na saída da incubadora uma pessoa te deu um cartão e ficou interessado em falar contigo para apresentar o projecto na processo de incubação que ele tem. Depois foste ter com ele no dia que nos conhecemos e esta pessoa quer que tu te inscreva e que participe num programa de duas semanas de formação intensiva. As inscrições abrem hoje e terminam do dia 7 e se for aprovada a tua candidatura, tens de pagar 35€ para participar se for aceite. No entanto o horário do curso impede que tu continues a trabalhar no callcenter, que é a tua única fonte de rendimento. Por fim se quiseres frequentar o curso, tens de sair do teu trabalho e não tem como pagar as tuas contas. Estou certo no meu raciocínio?”
Ouvir ele resumir tudo aquilo de forma tão rápida, clara e fria aumentou ainda mais o nó que tinha na garganta, com um misto de vontade de chorar e vomitar. Só consegui abanar a cabeça afirmativamente sem emitir qualquer som.
“Tenho uma proposta para te fazer, mas antes disso, como sou um homem das matemáticas, vamos fazer umas contas. Desculpa mas vais ter que me dar muitos detalhes da tua vida. Pode ser?”
Não compreendia o caminho que a conversa estava a levar, mas deixei-me ir pela sugestão dele. Apresentei todos os números que me foi pedido, desde quanto ganhava, valor do aluguel do apartamento, comida, água, luz, telemóvel, televisão, internet e transporte público. Ele escrevia todos os números numa folha de papel e depois de ter me espremido toda para lembrar até quanto gastava em cafés, pastelaria e a comer fora, ficou a olhar para os números todos escritos.
“Bom como te disse, tenho uma proposta para te fazer, mas não quero me responda já se aceita ou não. Quero que avalies bem o que te vou propor com calma e que ponderes todos os prós e contras, mas sozinha e sem pedir conselhos a ninguém, nem mesmo a tua família. Existe um ditado que um amigo meu me disse uma vez e que considero muito verdadeiro. Ele me disse que estamos rodeados de 3 tipos de detratores da nossa vontade: são a família, amigos e o cônjuge. Estes 3 tipos adoram debitar os seus pontos de vista sobre as nossas decisões e deixar-nos toldados sobre a verdade que queremos encontrar. Assim sendo, depois de falar muito, eis a minha proposta. Tu te inscreve no projecto ‘adição’ e apresenta o teu projecto. Se tu fores escolhida, vais ao teu emprego e pede para tirar férias relativas ao ano que começou agora, e assim tens 22 dias úteis de férias. Não pedes todos os dias, mas somente três semanas. Assim sendo com o teu período de férias podes frequentar o curso sem te preocupar com a possibilidade de perder o emprego. Além disso, te dá tempo suficiente para avaliar se a tua ideia de projecto pode ir a frente ou não. Por fim, a parte final da minha proposta é que venhas viver aqui comigo e vou ter ajudar com todos os temas referentes a números e fazer tudo para que o teu projecto possa ter o melhor plano de negócio possível. O que achas da minha proposta? Queres pensar nela antes de me responder?”
Estava atónita. Como é que não tinha pensado em algo tão simples como pedir férias e assim poder ter o tempo necessário para frequentar a formação, não perder o emprego e se, na pior das hipóteses, não der certo, posso voltar ao trabalho sem ter que dar explicações a ninguém. Tinha direito aos 22 dias de férias como todos os outros colaboradores da empresa. Por que não tentar? Só consegui me pôr de joelhos e lhe dar um abraço apertado onde sentia que ele tinha retirado de mim um peso de dez toneladas dos ombros. Como era bom tê-lo ali comigo. Deixei-me apertar no abraço que ele me dava e ter aqueles braços a volta do meu corpo me fez sentir que nada me poderia acontecer e que ele era, efectivamente, o meu príncipe encantado montado num cavalo branco que viera me salvar. Não precisava esperar mais para lhe responder. Porém quando ia abrir a boca para lhe responder que sim, ele pôs dois dedos na minha boca, e me disse:
“Pedi-te que pensasse com calma. Não quero nenhuma resposta precipitada e baseada em emoções agora, pelo menos sobre a parte de vir viveres comigo. Quero somente, se assim entenderes, saber se vais a frente com a inscrição?”
Respondi que sim com a cabeça muitas vezes e não conseguia parar de mexer a cabeça para cima e para baixo. Tinha um sorriso de orelha a orelha e algumas lágrimas corriam no meu rosto de tanta felicidade. Aquele momento de tanta felicidade não podia ter terminado de forma melhor, fizemos amor de forma intensa e eu perdera todos os medos e fantasmas que habitavam a minha cabeça.
Tinha tomado a decisão, iria me inscrever no projecto ‘adição’ e sem dúvida nenhuma queria estar a viver perto da pessoa que me completava e me dava carinhos como nunca tinha experimentado. Saltei da cama, vesti-me e fui a correr para casa para, entrar no site do projecto, e fazer a minha inscrição. Tinha encontrado o plano perfeito, pelo menos por agora era a melhor opção que tinha em mãos.