Sai da Casa do Impacto com o peito inchado de orgulho pois pela primeira vez tinha a certeza que o esforço e dedicação que aplicara, tinha tido um resultado. Sei que não era o resultado final, mas já tinha chegado a um patamar que, antes, nunca tinha atingido. Desci a rua paralela ao Miradouro de São Pedro de Alcântara com a visão de 180º sobre toda a zona central de Lisboa, a copa do arvoredo da Avenida da Liberdade e com o Castelo de São Jorge e a sua imponência a tomar conta de tudo mesmo ali do outro lado.
De repente olho para o relógio e vejo que já é quase meio-dia e que deveria ter chegado ao restaurante do sr. Madeira há pelo menos 30 minutos. Estava atrasada. Já tinha sido beneficiada por ele ao me conceder que chegasse atrasada, mas tanto não era admissível. Acelero o passo e desço a calçada da Glória o mais rápido que pude, não fosse eu cair e partir uma perna ou um pé. Escorrego algumas vezes por causa da quantidade de óleo e sujeira que há no chão, mas lá me aguento. Desaguo muito esbaforida na praça dos Restauradores e desato a correr pela lateral direita junto ao Palácio da Foz e do Museu Nacional do Desporto em direção a estação do Rossio. Faltavam dois minutos para o meio-dia e no semáforo à frente da estação da estação de comboio, passo para o outro lado do Teatro Nacional D. Maria II cruzo pela frente dos majestosos quatro frondosos pilares, ao estilo grego, que protegem a porta do teatro virada para a Praça D. Pedro V onde, até há algum tempo atrás era a paragem de muitos africanos que ficavam sentados nos degraus ou a volta a espera que aparecesse uma oportunidade de emprego ou que encontrassem um qualquer amigo ou um conterrâneo que os pudessem ajudar.
Cruzo muito rapidamente a praça e entro pela rua lateral junto da Pastelaria Suíça e saio mesmo na Praça da Figueira. Ao fundo vislumbro a placa do Restaurante O Transmontano e as cadeiras e chapéus de sol postos na esplanada. A medida que avanço pela praça olho para a porta do restaurante e lá está o sr. Madeira à porta a ver as pessoas a passarem e a convidar os estrangeiros que passam pela calçada a sentarem para almoçar. Aproximo-me mais do restaurante e cruzo o meu olhar com o do Sr. Madeira, que pareciam lançar faíscas de raiva contra mim. Chego mais perto e quando estou a passar ao lado dele, cumprimento com um boa tarde muito tímido e ele vira-se e diz “Alto lá. Onde pensa que vai menina Maria?”.
Paro e viro a cabeça ligeiramente para ele e digo “Vou me vestir e ir para o meu posto na cozinha.”
Parada a porta do restaurante com uns poucos clientes que estavam na esplanada a olharem para mim, recebo a resposta do sr. Madeira “Hoje a menina pode voltar para casa, pois não a quero aqui a trabalhar. Disse que podia chegar um pouco atrasada, mas já são meio-dia e quinze. Queira por favor ir-se embora.”
Atónita e quase sem acreditar no que estava a acontecer, tento abrir a boca para argumentar mas o sr. Madeira levanta o braço como a mandar-me calar e volta-se para as pessoas que estão a passar a convidar para sentarem e almoçar. Saio em direção a Praça da Figueira sem acreditar no que acabara de me acontecer. tinha tudo corrido tão bem até a pouco e agora levo com este balde de água fria na cabeça? Estava atarantada, não sabia para onde caminhar. Vejo-me de repente a porta da estação do Metro. Desço as escadas e caminho em direção a plataforma na direção do Campo Grande. Caminho como se fosse um zombie, com a cabeça a mil e a ver a minha vida a andar para trás. Nem me dei conta que, mais tarde, tenho que estar em Entrecampos para trabalhar no callcenter. Sento-me num dos bancos da estação, olho para o infinito enquanto as pessoas passam a minha frente ocupadas e absorvidas nos seus afazeres. Deixo passar o primeiro comboio, passa o segundo e somente ao terceiro é que entro e sento-me num dos bancos junto a janela. Ponho-me a olhar para escuro do túnel do Metro como se estivesse ali a resposta aos meus problemas. Vejo as estações a passarem até que chego ao Campo Grande. Saio, desço as escadas, saio para a rua e ao invés de apanhar a linha laranja para Odivelas, vejo que não tenho pressa.
Tinha um misto de amargo/doce na boca já que tinha sido selecionada para estar perante o júri para defender o meu projecto e não sabia se iria continuar ou não a trabalhar no restaurante do sr. Madeira. Quando se dá com uma mão, retira-se com a outra. Sentei num banco no jardim por debaixo do edifício empresarial que há mesmo ao lado da estação do Metro, para pensar um pouco mais na minha vida. Ainda não era uma hora da tarde e já me tinha acontecido tanta coisa na minha vida desde que acordara.
Lembrei-me de ligar para uma pessoa amiga, poderia tentar desabafar mas também poderia começar a dar-me palpites sem ter o conhecimento pleno de tudo. Não me apetecia estar a explicar tudo novamente e deixei a ideia de lado. Ainda tinha as folhas de papel com o meu projecto e o Guia da Mulher Empreendedora na mala. Peguei nas folhas de papel e nas costas de uma delas fiz um risco ao meio e escrevi do lado esquerdo o sinal de mais e do lado direito o de menos. No topo da folha coloco o tema em letras maiúsculas ‘A MINHA VIDA’.
Começo a listar do lado direito tudo o que de menos bom tem acontecido na minha vida. A falta de tempo para mim, as actividades que me desgastam a vida, não ter ninguém para amar, a putativa perda do trabalho no restaurante entre outras coisas. Do lado esquerdo começo a listar o que de bom tenho, tal como a promoção para supervisora, a melhoria do salário, deixar de trabalhar como empregada de limpeza, ter sido selecionada para o programa da Casa do Impacto, conseguir dormir até pelo menos as 08h00 e conseguir tomar um pequeno-almoço como dever ser. A medida que vou escrevendo começo a sentir a minha energia a voltar aos poucos. Começo a constatar preto no branco que afinal tenho sido mais beneficiada do que prejudicada.
De repente sinto o estômago a dar sinal de vida e lembro-me que desde o pequeno-almoço que não havia comido nada. Viro-me em direção a entrada da estação do Metro e no cafezinho que há a porta, peço um croissant com queijo e fiambre e uma garrafa de leite com chocolate. Sei que não é a comida mais saudável do mundo, mas pelo menos com o estômago cheio, vou pensar melhor. Volto a sentar-me no mesmo banco e agora pego noutra folha de papel e nas costas começo a delinear a apresentação que teria que fazer para defender o meu projecto. Rabisco as primeiras linhas e, a medida que escrevo, ganho mais e mais motivação para continuar. Escreve numa folha, pego em outra e continuo e quando dou por mim já tinha seis páginas completamente cheias de ideias e dicas para por na apresentação. Olho para o relógio e vejo que já são quase duas e meia. Tinha cerca de três horas e meia para estar em Entrecampos. Arrisco e volto a subir as escadas com toda a pressa para a plataforma em direção a Odivelas. Só pensava em chegar a casa e começar a colocar em prática todas as ideias que tinha no PowerPoint. Chego a casa passados trinta minutos, corro pela escada acima, abro a porta e jogo a mala e o casaco para o lado. Sento-me na mesa da sala e abro o computador. É um equipamento com alguns aninhos e mesmo sem a rapidez inicial serve o propósito. Como não tenho dinheiro para ter internet em casa, uso o Wi-Fi do vizinho que, gentilmente, deu-me a sua palavra passe. Depois de aguardar que finalmente o computador arrancasse, abri a aplicação e começo a transpor para ali as minhas ideias. Fico absorvida e com uma energia que nunca tinha sentido. Como aprendi com um amigo, primeiro devemos debitar tudo para o computador sem seguir uma regra específica, depois levantar, sair e deixar a revisão para o outro dia. Foi exatamente o que fiz. Até perto das cinco da tarde tinha os primeiros 10 slides cheios com as minhas ideias. Era hora de sair novamente e ir para o callcenter. Saio de casa em direção a paragem do autocarro e quando estou a caminho do trabalho sinto o telemóvel a vibrar na mala por causa de um SMS recebido. Procuro por ele na confusão da mala e quando olho o remetente da mensagem sinto um calafrio. Era do sr. Madeira a dizer que já não precisava voltar ao trabalho. Pedia para eu passar por lá para receber o dinheiro dos dias que tinha trabalhado. Só um pensamento me vinha a cabeça naquele momento, que se lixe. O sr. Madeira que enfiasse o seu restaurante naquele sítio. Iria seguir a minha vida. Segui para o trabalho e embrenhei-me nas tarefas de supervisora até perto das 22h. No outro dia iria pensar melhor sobre o que será feito na minha vida.
Acordei perto das 08h00, tomei um café e sentei-me novamente a frente do computador. Desta vez deixei-o ligado para não ter que esperar tanto tempo. Tinha que terminar para o dia seguinte a apresentação e enviar para a Srª Teresa da EAME. Depois disso pensaria na questão do sr. Madeira. Começo a ler, a apagar algumas coisas que estavam a mais e acrescento outras. Vou a internet procurar algumas imagens para reforçar visualmente algumas das minhas ideias e a medida que o tempo passava, via nascer algo que me agradava, mas ainda não estava como queria. Olho para o relógio e vejo que já são onze e quarenta e cinco. Levanto-me vou tomar banho e vou ao restaurante buscar o meu dinheiro. Se o sr. Madeira não precisa de mim, eu também ei de me arranjar. Não vou mendigar trabalho. Perto do meio-dia e quinze saio e vou de autocarro até a baixa. Desço do autocarro e atravesso a rua na Praça do Rossio. Com o aproximar do restaurante sinto o coração a bater mais forte. Não há como não deixar de sentir um aperto no estômago por já não poder trabalhar ali. Sempre tinha uma refeição de graça, mesmo com todo o trabalho que havia para fazer. Sigo em frente, entro no restaurante e o sr. Madeira está ao balcão a trabalhar na caixa registadora. Aproximo, cumprimento e sem dizer uma palavra sequer, o sr. Madeira estica um envelope na minha direção e diz “Boa tarde. Não quero que fique triste, mas a Maria já não era a mesma que trabalhava com o afinco do início. Tenho vindo a sentir e constatar que anda meio avoada e distraída. Olha menina, não tenho nada contra si, mas tenho que cuidar do meu negócio. Para que não fique prejudicada, além do pagamento do mês de dezembro, estou a lhe dar mais meio mês de janeiro. Assim pode ter alguma folga até conseguir um novo emprego. Desejo-te toda a sorte do mundo, miúda.” Abri o envelope, contei o dinheiro e tal como ele disse, efectivamente tinha um mês e meio da merreca de salário que recebia. Olhei para ele agradeci, virei as costas e saí para a rua. Tinha, num espaço de uma semana subido ao céu com a promoção e ser selecionada para o concurso, demitir-me de um trabalho e ser demitida de outro. Que contraste de vida. Segui em frente e voltei para a estação do Metro. Iria voltar para casa para terminar a apresentação para enviar para a EAME ainda antes de sair para o trabalho no callcenter.
Depois de voltar para casa, rever a apresentação e validar que não tinha erros de português ou frases pouco compreensíveis, dou por terminado. Abro o Outlook e envio a apresentação dentro de um ficheiro .zip para não ficar muito grande. Agora já não havia mais nada a fazer. Estava enviada. Vou me arranjar novamente para ir para o trabalho do callcenter e sou tomada por uma ansiedade e medo pelo que ainda estava por acontecer. mas como sempre ouvi dizer que quem morre de véspera é Perú de Natal, não vai adiantar nada eu me martirizar a tentar imaginar cenários e possibilidades. Saio de caso e vou trabalhar no ultimo emprego que tenho disponível. Desejava somente que o tempo passasse o mais depressa possível para amanhã de manhã ir para a Casa do Impacto defender o meu projecto.
Acordo perto das sete e meia assustada. Tinha tido uma noite cheia de sonhos e pesadelos que me deixaram cansada. Mas não podia ter tempo para ligar a isso. Era o dia ‘D’ da minha vida. Sigo para a casa de banho para tomar banho e cuidar um pouco melhor da minha aparência. Talvez por já não ser necessário acordar as cinco horas da manhã, deixei de ter olheiras roxas e sentia a pele do rosto até mais lisa. Dei-me o luxo de comprar um creme de corpo e passei com muito cuidado e afinco por todo o corpo. Que sensação maravilhosa. Já não sabia o quão bom era isso há muito tempo. Agora era hora de escolher a roupa. Abro o armário e só vejo roupas que usava há muito tempo. Lembro-me que tinha abdicado deste luxo de comprar roupa há bastante tempo, mas entre mortos e feridos alguma coisa havia de sair dali. Por fim escolho umas calças pretas em tecido e coloco uma camisola de gola alta creme que combinado com uma botas de meio salto, deram-me um ar mais sério e profissional.
Gastei as ultimas gotas do perfume que guardava para uma ocasião especial – e esta era sem dúvida especial. As nove horas saio de casa. Sentia um misto de excitação e medo, mas confiava que tinha feito uma boa apresentação e tinha treinado o suficiente para conseguir defender o projecto da ‘Maria Costureirinha’ perante o júri da Casa do Impacto e da EAME. Pelo caminho fui relendo as minhas notas para garantir que não esquecia nada. As nove e quarenta estou a porta da Casa do Impacto. Mais uma vez o coração dispara a medida que entro no Convento e me dirijo a sala da EAME. Desta vez não precisa de pedir ajuda a ninguém. Sabia onde ir. Entro pela porta e vejo ao fundo srª Teresa em pé ao lado do balcão. Ela olha para mim, sorri e quando me aproximo cumprimenta-me com um sorriso nos lábios.
“Bom dia Maria, preparada para o grande dia?”
Respondo que sim com a cabeça e ela continua. “Ótimo. Então por favor siga-me em direção ao auditório principal. Será lá que será o evento.” Sigo-a e saímos pela porta onde entrara, demos a volta pelo claustro central do Convento até uma porta que estava perpendicular a porta principal da EAME e, quando entramos, vejo que já lá estavam umas vinte pessoas sentadas, algumas conversavam em grupinho outras sozinhas a olharem para os seus computadores e a consultar notas em cadernos ou pastas. Tomo consciência que eles são os meus concorrentes directos a uma das dez vagas disponíveis. Como a drª Celestina havia dito na primeira reunião, seriam quinze projectos a concorrerem por dez vagas possíveis.
A Sr. Teresa vira-se e aponta um local para eu me sentar e informa que o evento começará dentro de trinta minutos e que serei a quarta pessoa a ser chamada. Mais uma vez agradeço e, nervosamente, sento-me onde ela me indicou. Alguns pares de olhos fugazmente viraram-se para me olhar, mas passados poucos segundos voltam para os seus afazeres.
Sento e procuro na minha mala de mão os papeis com as minha anotações para uma ultima revisão, mas confesso que estou somente a fingir que lia. Tenho a barriga atafulhada de borboletas.
Vejo entrar o primeiro candidato sozinho, passados 15 minutos o segundo grupo formado por três candidatos entra na sala e acho estranho não ver o primeiro sair. Passam mais 15 minutos e entra a terceira candidata. Começo a sentir as mãos suadas de nervoso. As borboletas voam com mais força na minha barriga e passados 15 minutos sou chamada para entrar na sala. Levanto-me e sinto que as pernas pesam 500 quilos cada uma pois não conseguia me movimentar e andar correctamente. Paro a meio do caminho, respiro fundo e vejo a srª Teresa com um sorriso no rosto a dizer: “Calma, vai ver que tudo vai dar certo. Não precisa ficar nervosa. Queira entrar por favor. Boa sorte!” abanei a cabeça ligeiramente como a agradecer e entro na sala.
O auditório não era um espaço muito grande. Cadeiras alinhadas numa sala inclinada que mais parecia uma mini sala de cinema do que um auditório. Entro pelo lado esquerdo e começo a descer as escadas. Olho de lado e vejo os concorrentes anteriores sentados na plateia e lá em baixo no palco uma mesa com sete pessoas sentadas. A drª Celestina sentada mais a direita levanta-se e acena para que me aproxime e sente numa cadeira a frente do júri. Continuo a andar, subo os três degraus e sento-me na cadeira onde ela indicara. Reconheço o rosto do dr. Pedro Teixeira sentado ao lado da drª Celestina. Os restantes cinco elementos não fazia ideia quem eram.
Passados uns segundos a drª Celestina olha para uma ficha a frente dela e começa a falar. “A concorrente seguinte é a srª Maria Conceição Martins que irá fazer a apresentação do seu projecto ‘Maria Costureirinha’. A apresentação terá no máximo 10 minutos seguidos de 5 minutos para questões colocadas pelo júri. Depois da sua apresentação, solicitamos que se mantenha na sala até terminar todas as apresentações. Compreendeu?”. Aceno com a cabeça e ela continua “Queira por favor então fazer a sua apresentação”. Levanto-me da cadeira e sigo para o púlpito que está a cerca de um metro de mim. O computador já estava ligado e com a página inicial da minha apresentação já no ecrã e projetada atrás de mim.
Nervosa, pego no copo com água que tenho a minha frente e dou um gole para tentar soltar a voz presa na garganta seca. Começo a minha apresentação e explico a origem e como surgiu a ideia, detalho ao mais alto nível a forma como as mulheres desfavorecidas, que frequentarem a escola, poderão beneficiar com o rendimento que for gerado pelo seu trabalho. Passo a explicar também a forma como penso sustentar o projecto com o meu trabalho de reparação de peças usadas e de criação de roupas novas para ser vendida na própria escola. Explico quem é o publico alvo como potenciais clientes das roupas produzidas e por fim, quais são os potenciais custos de operação da escola no primeiro ano. Com dez minutos somente não consegui entrar em muitos detalhes. Termino a minha apresentação dentro do tempo indicado pela drª Celestina e aguardo que o júri possa fazer questões.
Vejo-os a conversar entre eles mas não consigo escutar com clareza o que falam. Neste momento a drª Celestina toma a palavra e diz: “Senhores membros do júri. Agora que terminou a apresentação, existe alguma questão que queiram colocar a candidata?” uma mão masculina do outro lado da mesa levanta e diz:
“Sim, eu tenho uma questão.” Depois vira o rosto para mim e “Srª Maria Conceição, obrigado pela apresentação que nos fez do seu projecto. Foi muito clara e abordou muito bem todos os pontos principais. Mas tenho uma dúvida. Em que zona de Lisboa ou arredores pensa arrancar com o seu projecto?”
Mais uma vez a questão que me tinham feito na primeira reunião. Mais uma vez sinto que se não der uma resposta convincente, vou deitar tudo a perder. Olho para o júri, olho para os concorrentes que estão sentados na plateia e, depois de respirar fundo, olho para a pessoa que me fez a pergunta e respondo: “No meu entender existem dois bairros que poderão servir para implementar o projecto: Chelas e Alcântara.” Depois de responder, calo-me e continua a olhar para o júri. Volto a vê-los a conversar baixinho entre eles e tomarem notas. A drª Celestina volta a olhar todos os membros do júri a espera que alguém queira colocar mais questões, mas ninguém se pronuncia.
Ela vira-se para mim e diz, “Obrigado srª Maria Conceição. Queira por favor se retirar e sentar na plateia. Iremos anunciar quais os projectos vencedores depois de todas as apresentações.” Levanto-me, agradeço e desço os três degraus para me sentar na terceira fila da plateia onde não estava ainda ninguém sentado. Começo a ver todos os restantes projectos a serem apresentados. Alguns com ideias extremamente úteis e outras que pareciam ter saído de um filme de ficção científica. Já eram quase uma da tarde e finalmente termina a 15ª apresentação. A drª Celestina levanta-se e pede “Por favor, queiram sair da sala e aguarda no hall de entrada. Iremos deliberar quais os dez projectos que irão passar para o processo de incubação.”
Levantamo-nos todos e pouco a pouco deixamos o auditório. Mal saímos vi pessoas que acompanhavam os outros candidatos virem ao encontro deles e perguntar como tinha corrido, alguns se abraçavam como a comemorar e outros estavam a ser confortados pela família e amigos. Eu estava sozinha e sozinha continuei. Sentei no mesmo lugar onde estava antes de entrar e cheia de nervos aguardei. Eles demoraram cerca de 30 minutos. Eu já estava cheia de fome e só queria que aquilo terminasse. Sentia que tinha feito uma boa apresentação e que tinha passado bem a ideia. A porta do auditório se abre e a srª Teresa chama a todos os candidatos para entrar novamente no auditório. Sentamos praticamente nos mesmos lugares e a drª Celestina vai para o meio do palco, com uma folha na mão e começa a falar.
“Obrigada pela vossa disponibilidade para estarem aqui connosco e pelas excelentes apresentações que fizeram. Os vossos projectos foram selecionados numa primeira triagem entre outros 200. Só por isso já é uma vitória o vosso percurso até aqui. Porém como todos sabem isso é um concurso onde somente dez dos quinze projectos hoje apresentados seguirão para a ultima fase do processo de incubação e desenvolvimento do projecto que durará seis meses. Assim sendo, quero anunciar quais são os projectos que não irão seguir para a incubação. Por favor cada nome do projecto que disser, queira levantar-se e sair do auditório. Quero, desde já expressar aos candidatos que não ficaram o nosso profundo agradecimento e que não deixem os vossos projectos morrer aqui. Esta é somente uma fase onde temos que tomar uma decisão difícil de selecionar os projectos que acreditamos ter um maior impacto social e uma probabilidade de longevidade a partir do momento que esteja inserido na comunidade. Assim sendo, os projectos que não seguem adiante são os seguintes: ‘Trampolim’, ‘Casa com Comida’, ‘Reusar o Usado’, ‘Integração Global’ e ‘Maria Costureirinha’. Os representantes destes projectos, queiram por favor se retirar do auditório. Os restantes mantenham-se sentados por favor. Obrigada.”
Sentada na terceira fila do auditório não queria acreditar no que me estava a acontecer. Tanto trabalho, tanta dedicação para criar o meu projecto e agora tinha sido excluída. Não conseguira convencer o júri que o meu projecto era sustentável. Sentia-me a cair num buraco sem fundo. Estava destruída, tantos sonhos, tantas ideias e tantas coisas que queria poder fazer para ajudar mulheres desfavorecidas tinha sido preterido. Levantei-me e ainda tentei procurar uma boia de salvação junto da drª Celestina e do dr. Pedro, mas eles nem sequer estavam a olhar para nós. Falavam com os restantes membros do júri, provavelmente a delinear a apresentação para os dez projectos que seguirão em frente. Tinha levado um coice no peito e sentia as costelas coladas as costas. Mas o que terá falhado? Como poderia saber onde errei e o que deveria ter feito para passar? Isso nunca saberei. Resta-me voltar para o meu mundinho, agora que perdi o emprego do restaurante do sr. Madeira e já não trabalho no escritório a fazer limpezas, fica o consolo de trabalhar no callcenter e ter sido promovida. Saio para a rua desconsolada, triste e desiludida comigo e com tudo o que aconteceu nos últimos dias. A vida tem o poder de nos fazer encarar a realidade dura e crua sem dó nem piedade. Voltava ao ponto zero. Tudo o que tinha imaginado que poderia acontecer, não vai mais ser possível. Estou parada a porta do Convento de São Pedro de Alcântara a olhar para a rua a ver os carros, elétricos e pessoas a passarem de um lado para o outro. A vida continua e não se importa nada com o que me tinha acontecido a poucos minutos. Ainda aturdida com todos os acontecimentos, sinto um ligeiro toque no meu ombro esquerdo e desperto do torpor que estava. Era a pessoa que me tinha feito a pergunta no final da minha apresentação. Olho para ele e tento fazer um sorriso amarelo, mas que não sai como deve ser. Ouço então ele falar, “Olá, desculpe estar a incomodar. Meu nome é José Marques e tenho ao meu cargo um projecto chamado ‘adição’ que gostava muito de poder conversar consigo e convidá-la a participar. Gostei muito do seu projecto e acredito que ele tem pernas para andar e tudo para dar certo com o apoio que podemos dar no ‘adição’. Será que podemos conversar na segunda-feira de manhã? Tem disponibilidade para vir ter connosco ao nosso escritório? Fica nas antigas instalações da Carris em Alcântara. Sabe onde é?” Abano a cabeça afirmativamente e ele continua “Excelente. Estarei lá a partir das 10h e seria interessante poder falar consigo sobre o ‘adição’ e o programa de aceleração de ideias que desenvolvemos com empreendedores. Posso esperar por si na segunda-feira as 10h30? Tem a morada do nosso escritório ai no meu cartão. Também tem o meu telemóvel para o caso de haver algum problema. Por favor não desanime. Quando uma porta se fecha uma janela pode ser uma forma de entrar. Desculpe mas tenho que voltar lá para dentro para continuar com os meus colegas do júri e com os concorrentes que passaram. Espero por si então na segunda. Bom fim de semana.”
Não consegui responder ou sequer reagir a tanta coisa. Num minuto estava verdadeiramente derrotada e triste por não conseguir entrar e agora tenho uma segunda oportunidade de poder implementar a minha ideia. Sorri e desta vez estava mesmo contente com o que me estava a acontecer. Realmente abriu-se uma janela de oportunidade. O que será este projecto ‘adição’. Tenho que pesquisar na net o que eles fazem. Desta vez não me apanham desprevenida. Tenho o fim de semana para estudar e me preparar melhor. O que será que me espera na segunda? O que será que posso beneficiar com o ‘adição’? estas respostas só na segunda-feira vou saber. Agora quero ir para casa comer e as 18h tenho que ir trabalhar no callcenter. Que venha o ‘adição’.